Formas no Choy Lee Fut: para quê?

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Por Marcelo A. C. Santos

Tema recorrente na abordagem doutrinária das artes marciais chinesas, as formas ou rotinas (taolu, 套路 – sequência de técnicas pré-ordenadas, correspondente ao kata do Karatê) têm atraído muitos defensores e detratores ao longo do tempo. Especialmente nos tempos atuais, em que os programas de treinamento de lutadores profissionais são cada vez mais expostos na internet, em revistas e na TV, as discussões sobre o assunto parecem estar no auge.

Basicamente, nos extremos do debate estão, de um lado, os que ressaltam que grandes lutadores não praticam formas e, ainda assim (ou justamente por isso), têm êxito no “cage”; de outro, os que advogam que as rotinas são condições de aprimoramento técnico e que a parcela de artistas marciais que se dedicam às lutas profissionais é ínfima se comparada ao quantitativo que não se envolve com elas, razão pela qual o treinamento de seus integrantes não serviria para medir a eficácia da prática.

Como tudo que é extremo, ambos os argumentos apresentam falhas. Em primeiro lugar, há de se ter em mente que não são poucos os lutadores profissionais egressos de artes marciais que contêm um tradicional repertório de formas em seu bojo. Lyoto Machida e Georges St Pierre são exemplos óbvios, enquanto poucas pessoas sabem que Michael Page iniciou seus treinamentos sob a tutela de seu pai, perito no estilo Lau Gar de Kung Fu, e que Roy Nelson atribui seu sucesso ao treinamento no estilo do Punho Longo (Chang Chuan) de Shaolin. Fora isso, não devemos desconsiderar que a porção conhecida do dia a dia dos profissionais está diretamente ligada à imagem que seus patrocinadores e o próprio evento querem associar a eles. De outra parte, basta um breve passar d’olhos nos vídeos disponíveis nas redes sociais para que nos demos conta de que a perfeição técnica que algumas escolas de artes marciais chinesas perseguem através das formas está mais voltada à estética e à adequação a regras de torneios do que à dimensão combativa. E, claro, há ainda as academias voltadas essencialmente para o consumo, nas quais formas inteiras são pretensamente ensinadas – de modo uniforme e impessoal – em seminários que não duram mais do que uma ou duas manhãs.

Na verdade, formas podem ou não compor o programa de treinamento de qualquer artista marcial, seja profissional ou amador. Não há dúvidas de que competências como coordenação, lateralidade, mobilidade, estabilidade, capacidade cardiorrespiratória e consciência corporal, por exemplo, podem ser incrementadas pela prática dos movimentos sequenciais. Porém, essa mesma prática, por si só, não transforma o artista marcial em lutador – e o mesmo ocorreria com alguém que se dedicasse apenas a bater saco, ou pular corda, ou levantar peso, ou treinar manopla. Mesmo o treino exclusivo de sparring – e só sparring – não bastaria. Diferentes exercícios entregam diferentes valências, competências e resultados!

As artes marciais, de um modo geral, contêm muitas ferramentas, e é preciso compreender o encadeamento entre elas, a fim de que possam ser utilizadas em sinergia, de acordo com a lógica interna do sistema de treinamento, os objetivos do praticante e as estratégias do treinador. Essa compreensão também permite que, em determinados momentos, o foco do treinamento seja desviado de uma prática e passe a incidir sobre outra, mas essa é uma questão essencialmente metodológica, que depende da prévia estipulação de objetivos – no mais das vezes, transitórios.

É sabido que a arte marcial Choy Lee Fut contém diversas formas de mãos vazias e com diferentes tipos de armas tradicionais ou improvisadas. À luz da lógica interna do nosso sistema, pode-se dizer que essa é uma prática direcionada à compreensão adequada de peculiaridades técnicas da modalidade. Mas atenção: longe de significar que os colecionadores de formas merecem sentir-se privilegiados, o que acabamos de dizer sugere que, sem observância da raison d’être de cada forma e sem a capacidade de integrá-las a outros elementos de treino, o máximo que eles terão são ferramentas cegas, incapazes de atender satisfatoriamente ao fim a que se prestam.

Portanto, não se trata de quantas formas alguém decorou, mas do quanto do propósito de cada forma esse alguém conseguiu alcançar. Mais proveito terá extraído o praticante que executa uma só forma com fidelidade aos fundamentos que lhe são subjacentes do que aquele que decora e executa indistintamente 20, 30 ou mesmo 100 rotinas. A rotina alijada dos fundamentos mais parecerá uma peça de outro quebra-cabeças, um elemento estranho ou separado dos demais componentes do arcabouço da modalidade, assim desequilibrando a percepção e a contemplação do quadro por eles formados.

Obviamente, é lícito focar na prática de rotinas apenas por razões de estética coreográfica ou como modo de exercitar o corpo e limpar a mente, assim como é lícito buscar nelas prioritariamente elementos marciais. Mas não é disso que estamos falando, mas sim de dimensões ontológicas – e não meramente formais – de uma arte marcial.

Ilustramos com considerações técnicas, para facilitar o raciocínio do leitor: em nossa Escola Ancestral, normalmente a forma Ng Lum Choi (Punho das Cinco Rodas) precede o ensino da forma Siu Mui Fa (Pequena Flor de Ameixa). A primeira – longuíssima – ensina ao praticante como coordenar pernas, quadril, cintura, ombros e membros superiores em conjunto com a respiração adequada. O ensina a movimentar-se com leveza sem descuidar-se do equilíbrio. Apresenta combinações simples e demanda relaxamento na execução, a fim de que o praticante desenvolva a capacidade de golpear como um chicote, não como uma barra. A velocidade é moderada para que aflore a consciência corporal, que é mãe da precisão. Porsua vez, a curta rotina Siu Mui Fa implementa o desafio da rapidez, das combinações complexas, das mudanças bruscas de sentido e direção.

O leitor inteligente terá concluído que as habilidades da primeira forma pavimentam o caminho para a aprendizagem da segunda, e assim sucessivamente. Porém, também é verdade que a compreensão da segunda destranca um novo nível de entendimento e de execução da primeira. Em outras palavras, há um processo de alimentação e retroalimentação de conhecimento prático e teórico na progressão do aprendizado das formas, que abrange desde a plástica dos movimentos até a específica expressão energética por detrás de cada rotina.

Sem dúvida, esse processo requer prática e tempo de amadurecimento, demanda inúmeras idas e vindas, exige a exploração de diferentes camadas do mesmo objeto de conhecimento. Mais: ele pede a experimentação com o envolvimento de outra ou de outras pessoas, tanto para que se possa compreender o que a forma pretende ensinar, como para que se consiga extrair efeito prático dessa compreensão. Por isso, é incompatível com o imediatismo que seduz parte dos detratores das formas e com o fetiche pelo acúmulo de rotinas que contamina alguns de seus defensores. Uns e outros jamais verão além da superfície desse elemento e permanecerão tratando-o como uma ferramenta obsoleta ou como um fim em si mesmo.

Falando especificamente da Associação Pugilística Ancestral de Choy Lee Fut de San Wui (新會蔡李佛始祖拳會), aprendemos desde o início que a prática das formas merece ser contextualizada e combinada com as demais ferramentas de que dispomos. É comum ouvir Sifu Wong Zen Yem (黄振钦) dizendo:

– Não se preocupem com a quantidade de formas. Saber muitas formas não é importante. O mais importante são os fundamentos. Sem eles, as formas não são nada.

Formas acordam o corpo, ensinam como expressar e combinar as técnicas do Choy Lee Fut e a realizar mudanças no padrão dos movimentos. Mas devem ser combinadas com exercícios livres (san sau), com equipamentos e com combate, para que seus propósitos não se esgotem em si mesmos.

Em resumo, as formas são ferramentas que possibilitam ao praticante conhecer os fundamentos de sua arte marcial e não instrumentos mágicos que o capacitarão, por si sós, a enfrentar um combate real, com ou sem regras. Sua relevância teórica e aplicabilidade prática estão diretamente associadas à sua contextualização e integração aos demais elementos da modalidade a que pertencem.

Seja como for, a importância subjetiva das formas estará subordinada ao foco de interesse do praticante, que nem sempre estará voltado para o aspecto marcial, sendo legítimo que recaia, por exemplo, sobre a manutenção da saúde, a busca da boa forma física, a diminuição dos níveis de estresse, a manifestação da inclinação artística ou a simples prática recreativa. O importante é que, a despeito de seu foco, o estudante possa contemplar nossa arte marcial em sua inteireza. Olhando através dos aspectos combativos, poderá também vislumbrar as dimensões históricas, culturais, filosóficas e éticas que a fundamentam, abrindo portas para a ampliação de seu conhecimento e do aperfeiçoamento do seu próprio ser.

Para fechar este curto ensaio, reproduzimos pensamentos sobre o tema de nosso Sigung Chan Jeong Git (陈忠杰), Presidente da Associação Pugilística Ancestral de Choy Lee Fut de Sun Wui e Curador Cultural da Província de Cantão:

– Muitos praticantes desconhecem os fundamentos centrais do Choy Lee Fut; logo, suas formas não são adequadas para o treinamento de luta. Eles executam as formas de maneira muito bonita, mas é um treinamento imprestável para o combate.

É importante compreender o método por detrás da forma. Por exemplo: quando o ataque deve ser mais potente, como se relacionar com a distância do oponente etc. Toda luta real deve ser baseada no conceito de que se trata de um momento em que a fatalidade é uma ameaça real.

O ensino voltado para o consumo, sem foco no aluno, faz com que com que a tradição cultural perca as suas relações e os seus significados originais.

O número de formas (rotinas) pouco importa. Eventualmente algumas delas serão perdidas no seio do tempo. Colecionar dezenas de formas não faz sentido nos dias atuais, mas existem comerciantes do Kung Fu que estimulam essa vaidade. As características pugilísticas fundamentais que diferenciam o Choy Lee Fut das outras artes marciais, sua herança espiritual e cultural, isso sim deve ser preservado. Paralelamente aos aspectos práticos, implacáveis e letais do Choy Lee Fut, nossa cultura também envolve um senso enorme de retidão e de justiça.

O Choy Lee Fut esteve presente nas lutas sangrentas da Guerra do Ópio, do Reino Celestial de Taiping e da Revolução Anti-Japonesa, mas também na instalação de centros médicos para salvar os compatriotas de sofrimentos inenarráveis. Esses valores e sentimentos devem ser carregados no coração de cada praticante do Choy Lee Fut Ancestral. No fim das contas, ambas as coisas visavam apenas à restauração da paz.

O apego pelas formas é uma ilusão. A maior característica pugilística do Choy Lee Fut não está na execução de formas, mas em ser implacável, letal, combater inimigos em série. Dizem que o Choy Lee Fut é uma modalidade poderosa, mas o que faz dele poderoso é ser prático e imprevisível. O charme do Choy Lee Fut não está nas formas, não é esse o seu legado. Não me preocupo com o desaparecimento de algumas formas no processo de transmissão e de promoção do legado do Choy Lee Fut. Há coleções de manuais sobre elas. O que me preocupa é que a cultura tradicional do Choy Lee Fut se perca sob o impacto da sociedade moderna. Sem essa herança, o Choy Lee Fut perderia a sua alma.