Baseados nas pesquisas de mestre Chan Jeong Git e no relato de mestre Wong Zen Yem.
Por Marcelo A. C. Santos
Introdução
O presente estudo é apresentado ao público com o objetivo de colmatar as lacunas existentes nos escritos ocidentais que, de modo geral, ignoram por completo alguns aspectos relevantes do percurso histórico da arte marcial Choy Lee Fut e de seus protagonistas na localidade onde nasceu – o distrito de San Wui, na província de Cantão, sul da China.
Pretendemos lançar luz sobre o desenrolar de fatos que marcaram a existência da modalidade desde um ponto de vista interno, ou seja, segundo os registros encontrados no seio da comunidade marcial onde ela se originou e ainda é preservada e desenvolvida graças à dedicação daqueles que, através de tempos gloriosos e momentos tenebrosos, se comprometeram a protegê-la. Com isto, especialmente os praticantes conhecerão outra dimensão, que agrega cultura, história e princípios à já consabida eficiência do Choy Lee Fut em combate.
Coragem, tenacidade, persistência, dedicação, respeito e heroísmo são valores que orientaram a vida das pessoas referidas nas linhas abaixo e que merecem ser ressaltados, a fim de que possam inspirar os estudantes atuais e futuros de nossa arte marcial. De outra parte, uma história que abriga monges, sociedades secretas, revoluções, exílio, momentos de quase desesperança e uma grande virada por cima há de ser levada às novas gerações, para que possam carregar em seus espíritos o orgulho e a alegria de pertencerem a uma linhagem singular, que transcende o tempo e desconhece fronteiras.
Este escrito está assentado sobre as pesquisas históricas conduzidas por décadas pelo atual presidente da Associação Pugilística Ancestral de Choy Lee Fut de San Wui, mestre Chan Jeong Git, e nos relatos de seu porta-voz no mundo ocidental,mestre Wong Zen Yem – respectivamente, nossos Sigung (“avô”) e Sifu (“pai”). Não se trata exatamente de um trabalho acadêmico; logo, algumas fontes de consulta escritas serão mencionadas no final, sem remissão no corpo do texto.
Sempre que informações, confirmações e correções se fizeram necessárias, recorremos a nosso mestre, Wong Zen Yem, conterrâneo do Fundador Chan Heung e testemunha-chave da história do Choy Lee Fut nos últimos trinta e poucos anos. Em todas as ocasiões, Sifu mostrou-se absolutamente solícito e genuinamente interessado em nosso trabalho. A ele expressamos, pois, nosso mais caloroso agradecimento e nossa imensa admiração, com o registro de que sua generosidade foi o combustível que nos manteve acesa a motivação.
Uma última observação, antes de passarmos aos trechos de maior interesse do leitor: o termo “ancestral” é aqui utilizado para sinalizar que nosso Choy Lee Fut é fruto de uma transmissão linear que (1) remonta ao Fundador Chan Heung e (2) tem como base espacial de desenvolvimento o mesmo local onde a arte foi concebida. Pretender que “o nosso estilo” não tenha sofrido alterações ao longo do tempo não só seria tolice, como atentaria contra a própria essência do Choy Lee Fut – que, desde sua gênese, foi caracterizado pela máxima do “absorver o que é útil; livrar-se do que é inútil”. Como toda e qualquer criação que queira seguir sobrevivendo ao teste do tempo, o Choy Lee Fut ancestral se adapta às exigências do momento e do local e, assim, mantém-se atual e eficiente. Como salienta Sigung Chan Jeung Git: “as artes marciais devem manter-se abertas e inclusivas; precisam de constante aperfeiçoamento e inovação, para que se adaptem às exigências dos novos tempos. No passado, o foco dos praticantes era a defesa de si próprio, de sua comunidade e do país. Atualmente, se preocupam mais com a boa forma e com a saúde. O Choy Lee Fut é fruto de esforços inclusivos e, portanto, pode sempre incorporar elementos de modernidade e inovação”. E é disso que tratamos nas linhas abaixo.
Raízes
Choy Lee Fut (Cailifo – 蔡李佛) é uma arte marcial codificada em 1836 na vila de King Mui (Jingmei – 京梅), localizada no bairro Jik Ngai Mun (Yamen -即崖门) do distrito de San Wui (Xinhui – 新会), província de Cantão (Gwongdung, Guandong – 廣東). Seu criador, Chan Heung (Chen Xiang – 陈享), uniu o que identificou de melhor em três estilos pugilísticos, mesclando-os em uma dinâmica e eficiente modalidade combativa. Naquele período, a China se encontrava sob domínio manchu, e sua porção meridional abrigava fugitivos, lutadores e guerreiros de todas as regiões, que para lá rumavam a fim de escapar de perseguições políticas, de sentenças de morte e, não raro, com o intuito de estabelecer focos de resistência ao governo instaurado. A prática das artes marciais, embora proibida pelo governo central, ainda encontrava terreno relativamente seguro no sul, especialmente em Cantão e nas províncias vizinhas.
Nascido em 23 de agosto de 1806, Chan Heung foi iniciado aos sete anos de idade na prática do Punho de Hung (洪拳) ou Punho Budista de Hung (洪佛拳), um estilo derivado do templo Siu Lam (Shaolin – 少林) de Fukien (Fujian – 福建), sul da China. Seu primeiro professor foi seu tio, Chan Yuen Wu (陈远護). Dez anos mais tarde, foi apresentado ao mestre Lee Yau San (李友山), que lhe transmitiu a essência do estilo do lendário abade Ji Sim (Zhi Shan – 至善). Passados outros quatro anos, Lee Yau San encaminhou Chan Heung ao monte sagrado Lo Fau (Luofu Shan – 罗浮山) para aperfeiçoar sua técnica com Choy Fook (蔡福), monge conhecido por ostentar cicatrizes de batalha na cabeça e famoso por dominar as técnicas provindas do antigo monastério Siu Lam de Honan (Henan – 河南), localizado no norte da China.
Após anos de transmissão da essência marcial de Shaolin, do Caminho do Buda, da medicina tradicional e dos “seis encantamentos mágicos”, Choy Fook deu o treinamento de Chan Heung por completo, despedindo-se dele com a seguinte missão:
龍虎風雲會, O dragão e o tigre se encontraram na tempestade
徒兒好自爲, Meu discípulo, cuide-se bem
重光少林術, Para fazer rebrilhar a arte de Siu Lam
世代毋相遺. A fim de que as futuras gerações não a esqueçam.
Por insistência do líder de King Mui, Chan Heung retornou para sua vila natal naquele mesmo ano de 1834. Enquanto descia o monte Lo Fau, diz-se que ajudou cerca de 100 aldeões encurralados por bandidos, o que lhe rendeu seu primeiro reconhecimento por um feito heroico.
De volta a San Wui, dedicou-se por dois anos à prática da medicina tradicional e à sistematização de sua própria arte marcial. Findo esse período, a denominou “Choy Lee Fut” (蔡李佛) em homenagem às raízes de seu aprendizado: o monge Choy Fook, o mestre Lee Yau San e, como justa remissão ao mosteiro Siu Lam, a Buda (em cantonês: Fut). É fácil extrair daí que a expressão “Choy Lee Fut” abarca uma valorosa orientação: “honre sempre os ensinamentos de seus professores; nunca se esqueça da fonte da sua arte”. Ainda hoje, os três cumprimentos que marcam a abertura das rotinas ou formas praticadas em nossa linha de sucessão simbolizam claramente esse comando ético.
Assim, em 1836, Chan Heung finalmente estabeleceu o Hung Sing Gwun (Hong Shen Gwan – 洪圣馆), ou Salão do Grande Sábio, sua escola da arte marcial Choy Lee Fut, no Templo Ancestral Yuen Fuk Chan (Yuan Fu Chen Gong Si – 缘福陈公祠), situado na vila de King Mui.
No mesmo período, Chan Heung estabeleceu sua clínica médica, da qual tirava recursos suficientes para viver com conforto. Dessa forma, podia ensinar o Choy Lee Fut por uma quantia irrisória, prática raríssima na sociedade daqueles anos. Mesmo na atualidade, o ensino do Choy Lee Fut na escola do Fundador permanece fiel a essaorientação não consumerista: o que transmitimos não é um objeto de comércio, mas uma herança marcial e um legado cultural.
A nova arte marcial impressionava pela combinação harmônica dos ataques contínuos, das estratégias variáveis de curta, média e longa distância e dos chutes incomuns do método de Choy Fook; das pontes longas, dos ataques pendulares e da postura lateralizada do estilo de Lee Yau San; e das sequências explosivas de ataques com as palmas alternadas, das pontes curtas e médias e das manipulações das articulações da técnica de seu tio Chan Yuen Wu. Não demorou muito até que Chan Heung atraísse um sem-número de interessados e formasse seu primeiro grupo de discípulos – os “18 Lohan” (Sup Baat Lohon, Shiba Luohan – 十八羅漢). Logo, a eficiência do Choy Lee Fut ganhou notoriedade, e o Hung Sing Kwoon rapidamente ganhou filiais em outras cidades da província de Cantão: Chan Din-Fun (Chen Dianhuan – 陳典桓) instaurou o primeiro Hung Sing Kwoon na cidade de Futsan (Foshan – 佛山), enquanto outras escolas foram distribuídas por localidades cantonesas diversas por Chan Din-Yao (陳典尤), Chan Dai-Yup (陳大揖); Chan Din-Sing (陳典承); Chan Mau-Jong (陳謀莊); Chan Din-Bong (陳典邦); Chan Din-Wai (陳典惠); Chan Din-Jen (陳典珍); Chan Sun-Dong (陳孫棟); Chan Din-Dak (陳典德); Chan Dai-Wai (陳大威); Chan Sing-Hin (陳承顯); Chan Yin-Yu (陳燕瑜), Chan Dai-Sing (陳大成), Chan Din-Seng (陳典勝), Chan Mau-Wing (陳謀榮) e Chan Din-Gung (陳典拱). Na província vizinha de Gwongsai (Guanxi -廣西), o estabelecimento do Choy Lee Fut ficou a cargo do primeiro discípulo de Chan Heung, Lung Ji Choi (Long Zicai -龍子才).
Atividades revolucionárias:
Desde a conquista da China pelos manchus, com a derrubada da Dinastia Ming (明) e a instauração da Dinastia Ching (Qing -清) em 1644, o sul do país se havia tornado um abrigo de revolucionários que visavam à derrubada do novo governo. Com o passar dos anos, notícias como a da queda do heroico Monastério Siu Lam de Honan, incendiado por tropas Ching, alimentavam lendas que inspiravam a fundação de diferentes sociedades secretas que, para além de agir silenciosamente no campo político e social, proporcionavam a seus membros intenso treinamento na arte da guerra.
Dentre essas organizações, despontou a Hung Mun (Hong Men – 洪門), cujo ritual de iniciação continha a narrativa da traição de Siu Lam pelo monge proscrito A’Tsat – que, orientando o cerco do mosteiro e facilitando a entrada do exército imperial, sacrificara impiedosamente os seus pares. Contudo, o Buda do Dharma, testemunhando o ato de iniquidade, transformara nuvens em uma ponte pela qual alguns monges conseguiram escapar para o exterior do monastério. Já do lado de fora, viram A’Tsat ajudando os soldados e decidiram vingar-se, partindo, embora desarmados, para cima da tropa. Disso resultara que apenas cinco monges conseguiram seguir pela ponte mágica até a praia, onde foram acolhidos porpescadores. Na manhã seguinte, os soldados imperiais descobriram que havia sobreviventes e lançaram-se atrás dos cinco, encurralando-os à beira do mar. Ocorre que os gênios Chu Kwang e Chu Kwai vieram em socorro dos monges e criaram uma nova ponte de aço e bronze, pela qual eles escaparam em segurança até o Templo de Kao Chai. Lá, se depararam com um incensário de porcelana, no qual estava gravado “Derrubar [o governo] Ching e restaurar [a dinastia] Ming” (cantonês: Faan Ching Fuk Ming; mandarim: Fan Qing Fu Ming – 反清復明). Prosseguindo em sua viagem, os cinco monges, agora conhecidos como os Cinco Fundadores, juntaram-se a Chan Kan Nam, guerreiro de grande habilidade e detentor de impressionantes poderes mágicos, ao qual nomearam como primeiro Mestre de Loja da Sociedade Hung Mun. Com ele, caminharam até o local conhecido como Pavilhão da Flor Vermelha – que simbolizava o útero e, portanto, o renascimento do iniciado – e lá, pingando gotas de sangue dos dedos em uma taça de vinho, celebraram um pacto de irmandade contra as forças do império Ching, prometendo treinar soldados, comprar cavalos e reunir os bravos do império sob sua bandeira.
A forte alegoria iniciática envolvendo o monastério Siu Lam e o mistério que circundava as práticas e a composição da sociedade Hung Mun também inspiraram a criação de modalidades marciais e seus respectivos códigos de conduta, treinamento e transmissão. Não é incomum, até hoje, encontrarmos estilos pugilísticos que carreguem em sua denominação ideogramas que remetam à palavra “Fut” (Buda, em alusão ao mosteiro) ou ao fonema “Hung” – cujas variações de escrita, no mais das vezes, ocultam mensagens de um passado de bravura.
Muito embora não haja documentos que atestem a participação de Chan Heung na sociedade Hung Mun – como, de resto, seria de se esperar de uma organização secreta –, pode-se pensar em correlações com a denominação do estilo ensinado por seu tio, com o título de sua escola e com o poema deixado por Choy Fook. A propósito, é dito que Hung Sing seria uma abreviação cifrada do slogan revolucionário “Hung Ying Ji Sing, Ying Hung Wing Sing” (洪英至聖, 英雄永勝), que significava “os heróis de Hung são sábios; os grandes heróis sempre vencem”. Ademais, o próprio cumprimento de nossa antiga escola de Choy Lee Fut encerra um código que, decifrado, revela a antiga mensagem de “derrubar Ching, restaurar Ming”: primeiro, a mão esquerda, aberta, é sobreposta à direita, fechada. Em seguida, a mão direita, ainda fechada, é empurrada para frente da esquerda, que permanece tocando suas costas. Faz-se então uma respeitosa inclinação de tronco. Ora, a mão direita é o sol (日); a esquerda, a lua (月). Lua e sol compõem o caractere “Ming” (明) – que também significa “claro”, “evidente”. A mão esquerda sobre a direita significa que o sol se encontra eclipsado, encoberto – uma alusão aos tempos de trevas do governo Ching. Quando a mão direita se evidencia a frente da esquerda, significa que o sol volta a brilhar, e o céu está claro novamente. Em outras palavras: a tão sonhada restauração da dinastia Ming!
Independentemente de sua efetiva filiação a sociedades secretas, o fato é que o envolvimento de Chan Heung com atividades revolucionárias é bem documentado.
Entre 1839, eclodiu a primeira Guerra do Ópio, que se estendeu pela província de Cantão até 1842. Convocado pelo ministro imperial Lam Jak Chui (Lin Zexu – 林則徐), Chan Heung atuou no treinamento do grupamento conhecido como “os bravos da água”, que viria a enfrentar a poderosa armada britânica.
As batalhas perduraram até que a China sucumbiu e submeteu-se às exigências inglesas por meio do Tratado de Nanquim. Após a rendição chinesa, Chan Heung retornou a San Wui, frustrado por ter testemunhado os efeitos daninhos da corrupção dos governos locais e central.
Nessa época, o Choy Lee Fut se fortaleu na capital da província, Guongzou (Guangzhou – 廣州). E, graças ao grande quantitativo de homens treinados por Chan Heung durante a guerra, mais de 40 escolas de Choy Lee Fut foram estabelecidas em diferentes localidades do sul da China, tornando-o um dos estilos pugilísticos mais praticados da região.
Em poucos anos, a crescente insatisfação com o governo Ching daria força popular à chamada Rebelião de Taiping (太平), que resultou na instauração do Império do Reino da Grande Paz Celestial, o qual se manteve de pé de 1851 a 1864.
Os seguidores de Chan Heung, especialmente os que se encontravam em Gwongsai sob a liderança de Lung Ji Choi, deram suporte ao exército do Reino da Grande Paz Celestial, marcando presença nas batalhas lideradas por Fung Wan San (Feng Yunshan – 馮雲山) e naquelas que seguiram à sua morte prematura. O próprio Chan Heung empunhou a bandeira do reinado revolucionário em Gong Mun (Jiangmen – 江门) ao lado de seu primo Chan Kung-Nin (Chen Songnian – 陳松年), conselheiro do General Sek Dahoi (Shi Dakai – 石達開). Com o avanço das tropas Ching e a captura de Chan Kung-Nin, Chan Heung escapou para Zang Sing (Zengcheng – 增城), distrito de Guangzhou, de onde conseguiu fugir para Hong Kong. De lá, rumou para o sudeste asiático e eventualmente chegou aos Estados Unidos.
No Choy Lee Fut da escola ancestral, a forma ou rotina Ping Kuen (平拳) rememora a participação de Chan Heung e de seus seguidores nos combates daquele tempo. Também os “cinco sons”, ainda vigentes em nossa escola, remontam aos dias de batalha: para que pudessem se reconhecer mutuamente, praticantes de Choy Lee Fut vibravam “Wah” ao desferir uma “garra de tigre”, “Dik” quando chutavam, “Ye” ao socar ou desferir golpes com a palma aberta, “Ha” quando aplicavam o “chap choi” e “Hok” ao utilizar o punho na forma de bico.
Em 1864, Chan Heung seguiu para a Califórnia, passando a ensinar artes marciais a chineses que residiam em São Francisco. Quatro anos mais tarde, retornou a Hong Kong.
Durante os anos de exílio, Chan Heung não só permaneceu ensinando, como aperfeiçoou o Choy Lee Fut. Por diversas ocasiões, teve oportunidade de proteger seus compatriotas no exterior – como no episódio em que enfrentou o capataz de Nanyang que acuava os trabalhadores chineses, naquele em que derrotou o “Hércules Russo” em Hong Kong e no período em que ensinou membros da comunidade de São Francisco a se defenderem de seus opressores.
FONTES DE CONSULTA
http://www.choyleefutusa.com/
https://www.gwongzaukungfu.com/en/chinese-martial-arts-blog/choy-li-fut-chinese-martial-arts/
https://choyleefut.org/about/history-and-lineage
https://plumblossom.net/ChoyLiFut/history.html
http://www.sohu.com/a/341381224_270606
https://www.travelchina1.com/thread/Cai-Lifo-quan.html
http://k.sina.com.cn/article_1787920531_6a918093034003kyl.html
https://nskongfu.wordpress.com/2010/04/22//蔡李佛大事紀年